A primeira impressão que causam é a de 'farrapos humanos'…
Faltam-lhes os dentes, o sorriso, o brilho no olhar…
Faltam-lhes muitas vezes até a dignidade…perdida pelas ruas, calçadas e bueiros da cidade…onde se escondem…onde se enterram…onde se perdem…
Mas basta-lhes a mão estendida.
E sentados ali, numa cadeira de barbeiro, o toque das mãos voluntárias, ajeitando cabelo e barba são o carinho que desejam há tempos…faz fechar os olhos e sonhar por um pequeno instante…
Enquanto tesouradas lançam mechas pelo chão, se erguem novos homens…
Com a água suja do banho parecem ser lavadas as últimas dores. Não aquelas físicas, que maltratam o corpo machucado pela dureza das esquinas e becos…mas a dor mais profunda que levou a maioria deles a tentar fugir de si mesmo….
Mágoas, desilusões, perdas, fracassos…e num piscar de olhos, já não vêem mais saída… nada a que se prender, a quem recorrer.
Sobrevivem…"passam os dias", como definiu um deles…
O abandono de si mesmo não foi escolha deliberada, mas única opção aparentemente real e possível para esses homens…
Poderia ser qualquer um de nós, ou dos nossos…
Como saber o que as profundezas da alma, dos sentimentos e da mente nos reservam? Até onde nos levariam?
Na engrenagem do caos, álcool e drogas se tornam cias tão vitais quanto o ar que respiram… ajudam a esquecer, anestesiar… e devastam, tiram qualquer poder de reação, recuperação ou volta por cima…
Apenas nos raros momentos em que a entorpecência dá uma brecha, eles pedem ajuda…imploram por ela com corpo e alma…
"Não desejo essa vida pra ninguém, dona… Eu durmo de dia e perambulo de noite, pra não morrer…" me disse o jovem de 24 anos, há quatro "morando" nas ruas do centro da cidade…
olhar baixo, voz rouca de tantas pedras de crack….
"Quero sair dessa…quero sim…"
Todos querem, poucos conseguem… se livrar das amarras que os prendem às ruas é o desafio de cada segundo…
Cláudio sorri com a boca quase sem dentes… 45 anos de idade…aparência de 60…
O riso fácil, agora que está há mais de uma semana sem beber…
Ganhou escova de dentes, toalha novinha, uma muda de roupas:
"Olha dona, é nova, de loja, tem até etiqueta…eheh, tem cueca, opa, a cueca a câmera não pode mostrar, não"… se diverte…
Os "presentes" ele retira de uma lata de tinta onde, cuidadosamente, guarda o pouco que tem…
A lata é mais que isso… é companheira de noites de medo…é banco que descansa pernas judiadas…é travesseiro duro pro corpo franzino…
A cena chama a atenção: uma voluntária entrega uma sacola macia e nova pra substituir o "trambolho de metal"…recolhe a lata…"essa vai pro lixo"…
Nada disso…Cláudio disfarça e sai apressado pra recuperar a última de suas referências…
"Não largo dela, não. Preciso dela, minha companheira"…
Já não consigo dizer mais nada…
No caminho até o carro da reportagem uma mistura de sentimentos…nó na garganta, coração apertado… olhos marejando….respiro fundo…
O dia tem que continuar…. hoje, um bocado mais triste…